Igualdade de acesso

Somos todos e todas iguais?

Eu acredito no potencial do ser humano e defendo que ser humano é ser capaz de respeitar a pluralidade de cada pessoa e encontrar singularidades que gerem afinidades e permitam estreitar o relacionamento apesar das diversidades, que devem ser respeitadas, para convivermos em harmonia. Tão simples que parece até utópico. 

Fato é que a humanidade, este conjunto de seres humanos que (con)vive e (co)habita um mesmo planeta, está em constante aprendizado. Vivendo e aprendendo, vamos mudando nossos pontos de referência ao longo do caminho. E assim esperamos que amanhã seja melhor do que ontem. Mas o hoje está no meio. E o que estamos fazendo hoje?

Convidada pela Social In, uma consultoria parceira, a refletir acerca do conceito de acessibilidade sob o prisma da igualdade, mergulhei nos conceitos e nos fatos para trazer uma visão histórica e objetiva da questão. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em sua dignidade e direitos”. A Constituição Brasileira corrobora com essa afirmação desde 1988, quando entrou na pauta o princípio constitucional da Igualdade, trazendo luz às questões de igualdade racial, de gênero ou credo religioso e garantindo a todas as pessoas isonomia perante a Lei. O artigo 6 desta Carta lista ainda os direitos dos cidadãos: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. De 2000 a 2015, foram incluídos na lista de direitos a alimentação, a moradia e o transporte. Sim, como cidadãos do mundo representado pelas Nações Unidas somos todos iguais e como cidadãos brasileiros devemos ter acesso igualitário à saúde, educação, alimentação, moradia, trabalho e transporte, dentre outros direitos – com igual comprometimento em relação aos nossos deveres: votar, cumprir as leis, proteger o meio ambiente e o patrimônio público, pagar impostos, contribuir com as autoridades, além de educar e proteger nossos semelhantes e respeitar os direitos das outras pessoas.

Lamentavelmente, entre o que está escrito e a realidade em que vivemos há uma distância significativa e elástica. Significativa pois grande parte destes direitos é tão recente que ainda não se faz perceber, em especial por aquele grupo de pessoas que viveu – e ainda vive – à margem dessa sociedade que “conquistou” tantos direitos. Sim, somos iguais desde a antiguidade. Mas a distância ainda é elástica porque, desde então, somos iguais quando estamos sob uma mesma perspectiva: os nobres, os brancos, os heterossexuais, os “normais”. E os direitos são repartidos entre estes. Assim, ainda que o voto seja um dever, mulheres só tiveram acesso a este dever em 1932 e seu voto somente foi equiparado ao dos homens em 1965. Pessoas com deficiência tiveram seu acesso à educação e trabalho percebido a partir de 1991, quando a chamada Lei de Cotas obrigou empresas a contratarem profissionais com deficiência proporcionalmente ao quadro de colaboradores. 

O acesso aos direitos está na base do acesso às oportunidades.

Quando os professores de Harvard David Thomas e Robin Ely, autores de importante artigo sobre diversidade divulgado pela Harvard Business Review, apontaram Acesso como um dos paradigmas da diversidade, trouxeram luz sobre um ponto pouco explorado. Hoje não há dúvida de que ter acesso à alimentação, educação, amor e saúde deixa um indivíduo passos à frente de muitos outros, abrindo portas e ampliando o acesso, assim, à diferentes e melhores oportunidades.

No mundo em que vivemos hoje, a desigualdade social é muito marcante. Um relatório do Fórum Econômico Mundial de 2020 aponta que o Brasil está na 60ª posição no ranking de mobilidade social. Em 2016, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, afirmou no seu discurso de despedida na Assembleia Geral da ONU que “um mundo no qual 1% da humanidade controla uma riqueza equivalente à dos demais 99% nunca será estável”. Outro relatório, publicado em 2017 pela OXFAM (organização global de apoio e ativismo em relação às causas da justiça e das desigualdades), alerta para o crescimento da desigualdade como um fator de instabilidade emocional, inclusive, gerando medo e insegurança na sociedade. O documento enfatiza que a redução das desigualdades passa pelo acesso aos direitos básicos que, apesar de estarem “garantidos” pela nossa Carta Magna, não são percebidos pela população. 

O caminho para construção da igualdade apesar das desigualdades nos leva ao conceito de equidade. A palavra vem do latim aequitas, que significa igualdade, simetria, retidão, imparcialidade, conformidade e nos remete ao conceito de justiça.

O diplomata Rui Barbosa, que representou o Brasil na Conferência da Paz em Haya em 1907, reforçou o conceito com a seguinte afirmação: “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”.

Tratar os desiguais como tal é, portanto, o princípio da equidade. E vale reiterar do que estou falando com alguns dados, extraídos do relatório da OXFAM.

  • Nos últimos 40 anos, no Brasil, a oferta de serviços essenciais se expandiu: dados de 2015 apontam que a cobertura de acesso a água, por exemplo, alcança 94% para quem está entre os 5% mais ricos, mas cai para 62% quando se trata dos 5% mais pobres. No caso de cobertura de esgoto, ela abrange 80% dos 5% mais ricos; porém, cai para menos de 25% se observados os 5% mais pobres. A exceção está na energia elétrica, que teve forte expansão nas últimas décadas, sobretudo para as camadas mais pobres da população.
  • Na Saúde, percebe-se que pessoas com renda mais baixa são as que mais se servem dos serviços públicos, marcando ainda as desigualdades sociais de gênero e raça: o acesso de mulheres a hospitais, postos de saúde e vacinação, entre outros serviços públicos, gira em torno de 60% a mais que os de homens. E cerca de 75% das pessoas que se declaram negras usam serviços públicos de saúde, em comparação com uma proporção de 50% de pessoas brancas. 
  • Na base da Educação, o acesso também ainda não é para todxs, uma vez que, segundo dados da última PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2015), 75% das crianças menores de quatro anos de idade não estão em creches ou escolas.
  • O que falar, então, das Universidades? Em 2011, a probabilidade de um jovem branco da classe A, no último ano do ensino fundamental, ter acesso a professores com ensino superior completo era de quase 100%, caindo para menos de 80% no caso de jovens pretos da classe E. Com essa formação, a competição por vagas nas universidades é altamente desigual.
  • Ao entrar no mercado de trabalho, um jovem trabalhador com carteira assinada passa a ter acesso aos benefícios legais que, ao mesmo tempo que o “protegem”, tornam mais custosa a oferta de emprego, que acaba oscilando conforme a economia.

É certo que todas estas questões dependem em muito de políticas públicas, sim. Estamos caminhando lentamente e a Covid-19 veio ressaltar ainda mais essas e outras desigualdades. Mas ainda temos muito caminho pela frente até alcançarmos um patamar aceitável. E qual é o nosso papel, como sociedade, nisso tudo?

Eu escrevo do meu lugar de mulher branca privilegiada, com uma educação formal de qualidade, pós graduada em instituição privada que paguei com meu salário num emprego formal. Preciso reconhecer meus privilégios para saber o que posso fazer por quem não os teve. Então ofereço meu trabalho voluntariamente para apoiar na formação profissional de jovens em condição de vulnerabilidade social e também para preparar e distribuir alimento a quem não tem sequer um teto. Além de cumprir meus deveres de cidadã. 

E você, o que está fazendo?O que podemos, juntando nossas forças, fazer mais?

Sejamos a mudança que queremos ver no mundo para reduzir as desigualdades, ampliando o acesso às oportunidades.

por Sylvia Terra

Este artigo foi publicado originalmente em 01/07 no blog da Social In https://socialin.com.br/nosso-blog/