Assédio não é algo que se corrige em roda de conversas, mas com processos bem estabelecidos.

Neste texto desconfortável e mobilizador na medida certa, nosso consultor Paulo Rezende apresenta dados e ponderações sobre a cultura do assédio instalada na sociedade e, consequentemente, nas empresas. Importante destacar, mais uma vez, o papel das empresas na reeducação de pessoas adultas e na construção de uma sociedade mais inclusiva e segura para todas as pessoas. Mas eu ressalto também o quanto o desconforto que você pode sentir ao ler o texto do Paulo deve te mover a uma mudança de conduta, para que o grupo de pessoas engajadas aumente, os direitos e deveres sejam cumpridos e o respeito prevaleça.

É muito comum, quando o tema de assédio sexual e moral entra nas conversas do mundo corporativo, que pensemos que precisamos de maior consciência, mais abertura pra conversas, talvez até algumas ações como palestras. De fato, tudo isso é fundamental, mas esses pontos são partes de um cenário infinitamente maior do que podemos perceber nessas conversas.

Isso porque quando falamos de assédio no mundo corporativo precisamos lembrar de alguns fatores fundamentais: existem o agente (assediador), o destinatário (vítima), o ambiente (local de trabalho) e as ações tomadas (ou não) pelos responsáveis pelo local de trabalho.

Ou seja, em algum grau, maior ou menor de acordo com locais e circunstâncias, conversas, palestras e a tal abertura de maior consciência funcionam como uma camada pessoal de prevenção. Mas será que a camada pessoal fundamentalmente é suficiente?

De acordo com dados do TST, apenas no ano de 2021, foram ajuizados mais de 52 mil casos de assédio moral e mais de 3 mil casos de assédio sexual. E me permita fazer uma vírgula no seu pensamento ao te apontar que a esmagadora maioria das mulheres que sofrem todo e qualquer tipo de assédio não chega nem a notificar formalmente nas suas empresas, imaginem se vão abrir processos.

E não podemos falar sobre assédios sem passar pelo recorte social. O ambiente corporativo não é tão diferente assim, mas o que muda os números são as prováveis situações de vulnerabilidade das vítimas. Então vamos repensar um pouco mais sobre como nossa sociedade lida com assédio.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública em sua análise sobre os crimes cometidos em 2021, temos uma média de 130 casos POR DIA de violência sexual contra crianças e adolescentes.

De acordo com uma análise feita pela UNICEF que investiga casos de violência contra crianças e adolescentes entre os anos de 2017 e 2020, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos. Quase 80% dos casos contra meninas.

Enquanto na fase adulta, 85% dos casos de estupro são compostos por vítimas mulheres.

Eu sei. Não é nada fácil ler isso.

Mas se pra você não é fácil, imagine pra quem viveu isso e pra quem vive sendo perseguida pela sombra dos abusos sexuais.

O que eu quero te mostrar aqui é o seguinte: essa cultura não começa no escritório.

Ela começa na base da criação de toda uma sociedade que ja desumaniza os corpos femininos desde sua infância.

Reflita que com todos os casos, todas as violências, todos os medos, todas as atrocidades e a nossa sociedade como um todo ainda se movimenta em uma velocidade próxima de zero para mudar isso. Esforços mínimos são aplicados por uma parte, esforço nenhum pela maioria, e esforços colossais por uma ínfima minoria engajada.

Neste momento, podemos repensar os contrastes da sociedade com as empresas a partir do Código Penal em seu Art. 216-a que caracteriza assédio como: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”

Aqui me permita ressaltar que apesar do que afirma o Art.216-a, assédio não precisa de relação de poder para ser assédio.

Agora vamos olhar para a realidade das empresas que vivemos hoje: um colega fecha uma colega no corredor com perguntas, elogios e/ou indagações. Um homem exagera nas cervejas do happy hour e pergunta como que uma mulher linda e gostosa como aquela ainda está solteira. Um diretor diz pra sua analista que ela vá com o vestido vermelho colado para a reunião para que o charme ajude a fechar o projeto com algum cliente. Um homem pergunta para uma mulher lésbica “quem é o homem na relação” em tom de brincadeira, quando na verdade ele está perguntando que tipo de ato sexual ela comete na sua privacidade, geralmente ainda pedindo detalhes.

Percebem a invasão? Percebem como facilmente uma mulher pode se apavorar com a junção dos dados citados anteriormente com essas atitudes?

Um simples “me deixe te levar até em casa” pode ser o suficiente para uma crise de pânico quando você é uma mulher no Brasil.

Se pegarmos os direitos fundamentais dos trabalhadores encontraremos que o trabalhador tem direito à garantia de sua incolumidade física e mental. Agora vamos conectando os pontos.

Se o assediador não foi previamente e devidamente educado sobre códigos de conduta e ética, e por isso comete o assédio, a empresa tem culpa ao falhar em garantir um ambiente sadio para seu empregado como prevê a lei.

Se em um caso de assédio, mesmo após formalizações de denúncias, não existe uma tratativa, a empresa entra no vale da culpa.

E veja bem, isso não é meramente uma opinião minha, ou da FourAll enquanto coletivo.

Segundo a ministra do TST Maria Cristina Peduzzi, que já foi presidente da Casa e do CSJT, é DEVER do empregador promover a gestão racional das condições de segurança e saúde no trabalho. Ela diz que “ao deixar de providenciar essas medidas, ele viola o dever e o objetivo de cuidado, configurando-se conduta culposa. Cabe ao empregador, assim, coibir o abuso de poder nas relações de trabalho e tomar medidas para impedir tais táticas, de modo que as relações no trabalho se desenvolvam em cima de respeito e harmonia.”

Acredito que até aqui pude me fazer claro o suficiente para entendimento da minha linha racional.

Então deixo uma provocação final: sua empresa está pronta pra executar tais obrigações laborais como previsto em lei? Neste exato momento?

A resposta provavelmente é não.

E as vítimas seguem sendo vítimas, desde a mais tenra idade, e os coniventes seguem sendo coniventes, enquanto os abusadores seguem abusando.

Até quando?

Paulo Rezende é especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão, pai de 3 crianças, tem apenas 25 anos, se define como um homem bissexual e tem muita história pra contar.