A vida é um presente

Foi com esta frase que a lenda do Jazz Tony Bennett tornou público recentemente o diagnóstico de Alzheimer, doença com a qual convive desde 2016. “A vida é um presente, mesmo com Alzheimer”, disse o nonagenário Tony ao anunciar que será lançado em breve o novo álbum gravado em parceria com Lady Gaga.

A imagem mostra Lady Gaga e Tony Bennett no lançamento do primeiro álbum que produziram juntos.
Lady Gaga e Tony Bennett

A notícia me chamou a atenção menos por ser fã do artista e mais pela reflexão que me despertou. Um homem branco norte-americano de 94 anos, casado com a terceira esposa, pai de 4 filhos, cantor, profissional em atividade há mais de 70 anos, tem Alzheimer e segue trabalhando em um novo projeto. Percebe como cada pedaço da frase anterior impacta você de alguma forma? O que te chama mais a atenção? Atenção. Palavra importante. Neste mundo MUVUCA (Significativo, Universal, Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo) em que vivemos, a que dedicamos a nossa atenção? Quando nos deixamos impactar por algum fato, o que nos faz reagir? Se nossas experiências devem ser significativas, ainda que estejamos convivendo com ambiguidade e incerteza, o que nos faz sentir e encontrar significado ou sentido no que vivemos ou vivenciamos? Eu sugiro que releia a frase com as pausas a que nos convidam os adjetivos ou as vírgulas. Ou, se preferir, faça o mesmo exercício que eu fiz. Leia em voz alta as informações que compõem a frase.

Homem

Branco

Norte-americano

Casado

3 casamentos

4 filhos

Cantor

Trabalha

Tem uma doença degenerativa

Está lançando um novo projeto

Que sentimento fica para você ao final?

A minha atenção foi direcionada para essa notícia em virtude dos meus estudos sobre vieses, para compor um módulo sobre o tema para a Academia da PlurAllidade. Duas das quatro sessões em vídeo já foram lançadas e eu sigo estudando, por isso acho oportuno compartilhar um pouco.

Cada palavra lida pode nos remeter a significados muito peculiares, associações que fazemos entre as palavras e sensações que nos remetem a emoções e são expressas por nossas ações. Tudo muito rápido, automático. Na maioria das vezes, mais rápido do que deveria ser. O professor e psicólogo Daniel Kahneman explora questões relacionadas ao julgamento e à tomada de decisões no livro “Rápido e Devagar, duas formas de pensar” em que descreve os chamados Sistema 1 e 2. O primeiro seria o responsável pelas nossas respostas rápidas, nossa capacidade de julgamento precipitado e o que ele chama de “ilusão da verdade”. O segundo é responsável por conter o primeiro, questionando, ponderando, tomando o tempo necessário para analisar os fatos e dados para chegar a uma decisão supostamente mais complexa.

No primeiro, moram as heurísticas e os gatilhos mentais, recheados de estereótipos que nos ajudam a responder rapidamente aos estímulos. É diferente do que reconheço como padrão? É uma ameaça. Então, entra em cena nosso sistema límbico, primitivo, cuja função é nos defender das ameaças. Como? Fugindo ou atacando.

No segundo, vive o esforço da consciência, do raciocínio, das crenças e escolhas pensadas.

Ou, nas palavras do autor: “Descrevo o Sistema 1 como originando sem esforço as impressões e sensações que são as principais fontes das crenças explícitas e escolhas deliberadas do Sistema 2.”

Eis que chegamos ao ponto em que podemos falar sobre vieses. Estrelas do Sistema 1, vieses são padrões de julgamento criados a partir de um contexto ambiental (do ambiente em que você vive, sua origem, seu histórico, seus gatilhos e heurísticas; o que você aprendeu e reconhece como verdade) que usamos como atalhos para nossa tomada de decisão. O que você vê, do jeito que você escolhe ver, com base no que você apreendeu do mundo a sua volta.

Em uma nota de pé de página, o tradutor do livro explica que “em inglês, a palavra bias é utilizada tanto no âmbito da estatística e da psicologia cognitiva (campos em que se consagrou traduzi-la por “viés”, palavra pouco usada no português) como na linguagem corrente (assim como tendency, inclination, propensity, prone, tend, trend etc.) para designar “tendenciosidade, preconceito, tendência, propensão, inclinação” etc. Nesse mesmo contexto semântico as noções de biased/unbiased: “parcial, viesado, tendencioso/imparcial, não viesado, não tendencioso”, muito exploradas no livro todo.”

Quando conscientemente pensamos em nós mesmos, nos identificamos com o Sistema 2: como seres conscientes, de raciocínio ativo, com nossas crenças e plena capacidade de escolhas e decisões. Mas quando a ação acontece, se não mantivermos o botão da consciência pressionado, é o automático Sistema 1 que comanda o show. O que fazer, então? Quanto mais pudermos tornar conscientes nossos padrões de julgamento, prestando atenção ao nosso comportamento e buscando os gatilhos que nos levam a agir de tal modo, mais poderemos questionar esses conceitos pré-concebidos que impactam nossas ações. E descobrir novas tendências, mudar nossas inclinações, trabalhar nossos preconceitos.

Em resumo: eu e você temos vieses. E não deixaremos de ter. Mas, uma vez que estejamos conscientes, poderemos usá-los a nosso favor e em favor da convivência com outras pessoas. Podemos começar prestando atenção ao ponto de vista de outras pessoas, que sempre será diferente do nosso.

Voltando ao Tony Bennett, ao ouvir um podcast que contou a notícia começando pela frase que ele usou e que dá título a este texto, fui capturada pelo viés otimista que me é peculiar e me conectei com a história do cantor de sucesso que se mantém ativo apesar da adversidade, tem o apoio da família e ainda demonstra gratidão pela vida. Esse é o meu ponto de vista sobre a notícia. Qual é o seu?