Nenhuma criatura se basta a si mesma

Papa Francisco cunhou esta frase na Encíclica Laudato Si, onde versa sobre a relação entre o ser humano e o planeta Terra.

Em uma aula recente, o professor e teólogo Leonardo Boff citou esse texto do Papa e ressaltou que vivemos um momento de profundos questionamentos aos padrões de conduta e consumo da sociedade, o que me levou a outra reflexão: sobre o quanto a sociedade moderna ainda confunde o TER e o SER. Refletir sobre o mundo que quero ter ou deixar para meus filhos é diferente de refletir sobre que tipo de pessoa quero ser neste mundo – e consequentemente que tipo de pessoas quero que meus filhos se tornem. Ser depende de mim, das minhas escolhas e do meu esforço particular para identificar em mim boas e más tendências, valorizar o que é bom e reprimir o que não é. Ter depende também do meu esforço de ser persistente, sagaz e disponível para o trabalho e seus resultados. Mas definitivamente, o que escolhemos ser é muito mais do que podemos ter. Quando começo a me questionar sobre estes pontos, posso prestar mais atenção ao entorno das minhas decisões de ser ou ter. Essa é a lógica dos relacionamentos. Da mesma forma, posso escolher reforçar os valores que me tornam um ser humano e demonstrar respeito e cuidado com as pessoas ao meu redor. Assim reforço o conceito de SER – como eu sou ou como quero ser e como são as pessoas com quem convivo, sem filtros. E isso me basta, porque percebo que o professor está certo quando diz que “o paradigma da conquista dá lugar ao do cuidado”. O paradigma da conquista pressupõe dominação e submissão. O paradigma do cuidado pressupõe igualdade – de tratamento, de oportunidades. Respeito, enfim, à pluralidade que nos cerca.

Fazendo uma rápida releitura dos textos publicados no Blog da FourAll em 2020, vejo que falamos algumas vezes de desigualdade social e sobre os impactos dela na vida das pessoas. Nosso mundo ainda é tão desigual a ponto de coexistirem nele a superprodução e o desperdício de alimentos, que se contrapõem à fome, a abundância de recursos naturais e a escassez de condições sanitárias, que mostram extremos com os quais convivemos.

Também tem sido cada vez mais extremados os debates que permeiam o contexto de diversidade. O tema já ultrapassou a fronteira das organizações e ganhou a mídia como um chamariz de provocações – que não só provocam o debate em si, o que seria muito oportuno, já que é preciso falar sobre diversidade e estimular reflexões sobre as diferentes lentes que usamos para ver o mundo. Depois de muito ter lido e escrito sobre o tema, ainda acho que esta é a melhor analogia: cada pessoa vê o mundo com um determinado tipo de lente que abarca suas crenças (religiosas, científicas, culturais), que tem relação direta com seu nível e tipo de formação, com a família e a cultura em que foi criada, com a vivência de sua cor de pele, sua classe social, sua prática profissional, sua identidade de gênero, etc etc etc. Será que a minha lente é igual a sua? Seja quem você for, eu garanto que não. Naturalmente, podemos ter semelhanças. Nossas lentes podem convergir em alguns destes pontos. Mas ainda não encontramos lentes 100% iguais. Daí o porquê de o conceito de pluralidade englobar as diversidades. As nossas diversidades nos tornam pessoas únicas. E se todos somos únicos, somos todos diferentes. E é com todas essas diferenças que convivemos e nos relacionamos. Toda pessoa é um nó de relações em todas as direções e há um famoso estudo de Harvard que afirma que boas relações nos mantem felizes e saudáveis. Por isso devemos começar a exercitar cada vez mais a preocupação empática: tratar a outra pessoa como ela gostaria de ser tratada – respeitar o ponto de vista dela. E volto ao professor Leonardo Boff com uma frase que usamos para propor uma dinâmica de treinamento: “Um ponto de vista é a vista de um ponto”. E como viver com a vista de apenas um ponto num mundo VUCA ou MUVUCA em que o cenário muda constantemente, trazendo ambiguidade e complexidade para nosso dia a dia, tornando globais questões incertas e significativas, onde buscamos propósito e sentido para combater a depressão e o abatimento… Tudo isso, somado às muitas pesquisas e estudos que ratificam o valor da diversidade na vida das pessoas, reforça o propósito da FourAll: trabalhar por um mundo melhor, gerando movimentos que estimulem mudanças na sociedade.

Já citamos Epícuro em outro texto do blog. A felicidade é um bem supremo e alcançá-la exige trabalho duro. O autoconhecimento e o amor são oportunas ferramentas para esse trabalho. E se raramente nos damos o direito a uma pausa que nos permita um encontro com nosso eu interior, que possamos fazer isso hoje. A pausa é um convite para observarmos o momento presente.​ E este é o melhor presente que podemos nos dar.

Começamos um novo ano. 365 dias novinhos para fazermos de novo ou fazermos algo novo, de acordo com as aclamadas resoluções de ano novo.

Bem, estamos no 7º dia e eu sugiro uma pausa para que possamos refletir se, de fato, algo mudou ou deve mudar. Se este ano vai ser diferente, o que vamos fazer diferente? Ou que diferença acolheremos em nosso dia a dia? E se concordamos que pluralidade é o conjunto de diversidades e diversidade é o que marca nossas diferenças, precisamos começar a pensar no tema não apenas como um bom tema para debates mas como algo que promova ações e mudanças em nosso comportamento e em nosso ser.

Ficam as perguntas:

Quem você escolhe ser? E como quer cuidar de quem está ao seu redor?