Sou mulher branca, cabelos castanhos lisos, estatura média, peso considerado normal, tenho 44 anos, sou cis e hetero, pós-graduada, nascida e criada na cidade do Rio de Janeiro. Reconheço que há muitos privilégios nesta descrição. E não porque sejam necessariamente vantagens, mas certamente são liberdades. Vantagens e liberdades são encontradas no dicionário como sinônimos de privilégio. Vantagem é o conceito que usualmente atribuímos ao que julgamos ser um privilégio. Mas quero chamar a atenção para o quanto estas características me permitem viver em sociedade com a liberdade de ser quem eu sou, porque meu corpo e meus títulos aqui descritos são aceitos socialmente.
No livro “A diversidade”, Mario Sergio Cortella, um homem branco, explica que “falar de” é falar de dentro, a partir de nossa vivência ou experiência. O contraponto é “falar sobre”, quando falamos de fora, a partir do nosso conhecimento, da nossa observação, do nosso estudo ou da nossa análise. Eu, como mulher branca, portanto, não falo de racismo. Porque não vivencio o racismo na pele. Mas posso falar sobre racismo, pois tenho meu ponto de vista a respeito, embasado em referências das quais posso me apropriar para tomar posição e me expor acerca de.
Essa explicação complementa o conceito de “lugar de fala” difundido por Djamila Ribeiro, mulher negra, quando defende que falar é o ato de tornar-se sujeito, deixando de ser objeto da ação ou do pensamento e assumindo o protagonismo. Ela costuma pontuar a diferença entre lugar de fala e lugar social, ancorada pelos estudos de Patricia Hill Collins, mulher negra que reafirmou a importância de pensar o lugar social da mulher a partir da mulher negra, ressaltando que ser branca ou negra implica em ter um lugar social diferente frente à sociedade, diferentes também do lugar social de homens negros ou brancos. Djamila conclui que “um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e representatividade.”
E é aqui que eu entro novamente. Como mulher branca, eu não represento as mulheres negras tampouco os homens negros, mas posso, sim, teorizar e expor as minhas considerações acerca do racismo a partir do lugar que ocupo, contando o que vejo e como me sinto a respeito.
Eu vejo uma sociedade racista enrustida, que ainda não percebe o quanto é impactada pela história contada do ponto de vista dos vencedores que aprendeu na escola e pelas questões de raça, gênero e classe que estruturam essa mesma sociedade, que tende a calar-se diante do tema. Pessoas brancas, como eu, em seu lugar de privilégio historicamente ocupado, não veem o privilégio como tal, especialmente quando sofrem “os mesmos” desafios que afetam a todas, “igualmente”. As aspas ressaltam o questionamento. Certamente eu posso ter vivenciado desafios que pessoas pretas nas mesmas condições também vivenciaram. Mas eu não vivi o que elas viveram. Em algum ponto da minha carreira eu descobri que a meritocracia é como uma colcha de retalhos: cada julgamento é como um retalho que vai se juntando a outros e constituindo uma imagem, a partir da qual alguém define o seu mérito. Mas acredito que pessoas pretas podem ter percebido isso antes de mim. Afinal, eu nunca me senti diferente na turma da escola ou no grupo de trabalho. Mas quando resgato fotos das turmas e grupos pelos quais passei, noto cores diferentes em poucas delas.
Sim, num Brasil em que mais da metade da população é declaradamente negra, eu (mulher branca, nascida e criada no Rio de Janeiro que estudei em escolas particulares e trabalhei em grandes empresas) nunca convivi com um grupo sequer em que pessoas brancas como eu fossem minoria. Ao contrário: tive poucos professores negros e apenas uma mulher negra na liderança das equipes pelas quais passei. Daqui, de onde eu vejo o mundo, a sociedade que me cerca ainda é majoritariamente branca. E está incomodada com os movimentos. Vidas negras importam! Sim, claro! Mas todas as vidas importam, não? Evidente… evidência de que a discussão é mais que tendenciosa, é pendular.
Eu vejo que, quando a sociedade fala, posturas extremadas afastam a discussão do diálogo construtivo que diverge para convergir. Um exemplo: quando uma pessoa preta alisa o cabelo, pode estar se “adequando” a um padrão de beleza socialmente aceito, aceitando a “opressão”. E eu já vivi de perto esta situação com duas irmãs muito queridas que eram orientadas pela própria mãe a alisar o cabelo para que ficasse bonito. Uma delas um dia se rebelou e assumiu que bonito era o cabelo dela do jeito que era: crespo, arredondado, emoldurando o rosto dela, como ela gostava. E era ela quem tinha que gostar. Do outro lado, já ouvi de um adolescente branco que se uma pessoa branca faz um rastafari no cabelo, pode ser acusada de “apropriação cultural” por uma pessoa negra. Quem disse? Pouco importa. O pluralismo me ensinou que é preciso saber ouvir e separar a pessoa do que ela fala. E isso tem muito a ver com lugar de fala. Só reforça a ideia de que toda e qualquer pessoa pode falar sobre um determinado tema, desde que o estude e descreva a partir do que percebe. Pois eu percebo o racismo estrutural mesmo, como definido por Silvio Almeida, homem negro, e defendido por Djamila em seu “Pequeno Manual Antirracista”, onde diz que toda pessoa deve conhecer a História para que pessoas brancas, como eu, possam se responsabilizar (não no sentido de culpa, mas da ação) pelo sistema de opressão que as privilegia e para que pessoas negras tomem consciência e não reproduzam erros do passado, assumindo o protagonismo de suas histórias.
Eu ainda me espanto quando percebo que há poucas referências sobre racismo escritas por pessoas brancas. Porque também vejo que o racismo é um problema de todas as pessoas, independente do quanto são afetadas diretamente por isso. Indiretamente, cada pessoa sofre com o racismo. Seja porque se sente oprimida, porque alguma pessoa que lhe é cara sente a opressão ou, no outro extremo, porque se deixa consumir pela opressão de ocupar o papel de opressor. Então finalizo com um trecho do livro do Cortella, branco como eu, influente e perspicaz como quero ser cada vez mais:
“Nessa hora, vale lembrar que não existe liberdade individual.
A minha liberdade não acaba quando começa a do outro, mas sim, quando acaba a do outro.
Se algum ser humano não for livre da fome, ninguém é livre;
se alguma pessoa não for livre da discriminação, ninguém é livre;
se qualquer um ou qualquer uma não for livre do preconceito, ninguém é livre.”
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Sobre as referências, deixo aqui algumas que estou explorando para compor o módulo Castas e Raças a ser publicado na Academia da PlurAllidade neste mês, além das já citadas:
- Isabel Wilkerson, mulher negra, autora do livro “Casta”
- Laurentino Gomes, homem branco, autor da série “Escravidão”
- Darcy Ribeiro, homem branco, autor de “O Povo Brasileiro”
- bell hooks, mulher negra, autora de “Ensinando a transgredir”