É muito comum o pensamento de que diversidade e inclusão é uma coisa muito reservada para os grupos minorizados mais “famosos” em debates sociais como mulheres, pessoas negras, LGBTs, deficiências visíveis dentre outras…
Mas a grande verdade é que todas as pessoas são diversas, com seus maiores ou menores graus, e quando o assunto é melhorar a inclusão das pessoas, todos os temas se amarram e se integram em um único resultado positivo.
Isso porque quando eu falo de comportamentos ofensivos, de chacota, de discriminação, eu falo de um cenário cultural do Brasil onde o “zoar” é naturalizado.
Se não for com negros, será com o careca. Se não for com a mulher alta, vai ser com a mulher baixa. Se não for por orientação sexual vai ser por peso. E por aí vai…
E nessa linha de raciocínio, existe uma abordagem de suma importância que não recebe a merecida visibilidade que é a NEURODIVERSIDADE.
Neurodiversidade hoje é usada principalmente para falar de transtornos e deficiências intelectuais/cognitivas não visíveis, porém seus debates incluem todas as pessoas, incluindo a neurotípicas.
Se esses termos te deram um leve nó na cabeça, não se preocupe, porque eu vou te ajudar a entender todos.
Vamos começar com o conceito de neurotípicos e neuroatípicos (ou neurodivergentes, pois são a mesma coisa com termos diferentes).
Os cérebros humanos claramente não são a mesma coisa e são imensamente influenciados em seus comportamentos por diferentes ambientes e experiências ao longo da vida. Um bebê de três meses já demonstra percepções enviesadas por ambientes.
Mas mesmo em todo esse cenário de variações possíveis eles ainda tem determinadas coisas em comum, como por exemplo etapas de desenvolvimento em questão de comunicação, coordenação motora, regulação emocional, interação social e habilidades cognitivas.
As pessoas que seguem esse “padrão” de funcionamento, como a maioria, são as chamadas de neurotípicas, ou seja, pessoas com funcionamento neural comum entre elas como maioria.
Para que esse padrão comum seja alterado, é necessário que esse cérebro possua alguma alteração como raiz, como transtornos psicológicos, psiquiátricos e educacionais. Essas pessoas que possuem esta alteração são chamadas assim e neuroatípicas ou neurodivergentes.
Entremos agora então no termo neurodiversidade.
O termo foi cunhado pela socióloga australiana e portadora da síndrome de Asperger Judy Singer, em 1999, levantando debates de que muitos cenários de pensamento, aprendizagem e atuação são possíveis entre nós humanos e que essas diferenças não definiam nem limitavam o potencial humano.
Nessa época, o objetivo era juntar os neurotípicos com os neuroatípicos como forma de demonstrar a viabilidade de pensamento e atuação das pessoas. E principalmente para falar das diferentes formas de se aprender.
Com a evolução do debate viemos para o cenário atual onde usamos o espaço da neurodiversidade como forma de dar visibilidade para pessoas com deficiências intelectuais e cognitivas para que assim haja maior inclusão social dessas pessoas em seus mais variados espaços.
E ao que tudo indica, estamos (felizmente) voltando para do debate original de Judy, mesclando potencias de neurotípicos com os neuroatípicos.
Vamos agora falar sobre transtornos e sobre como eles afetam (e potencializam) os cérebros neurodivergentes.
O transtorno pode ser conceituado como a perturbação da ordem mental devido a falha na estimulação da parte frontal do cérebro chamada de córtex pré-frontal.
Os transtornos podem ser tanto congênitos, ou seja, o indivíduo já nasce com eles, ou adquiridos ao longo da vida por fatores ambientais ou fisiológicos, como um acidente, por exemplo.
Mas ter um transtorno significa que alguém é louco?
Primeiramente que não usamos essa palavra em hipótese alguma. É deveras agressivo e preconceituoso tratar uma pessoa neurodivergente como louca.
Dito isso, eu lhe digo que ter um transtorno é visto hoje pela literatura médica e acadêmica como uma forma diferente de funcionamento do cérebro que pode impactar em diferentes graus a vida de determinada pessoa.
Gostaria de citar um psicólogo que atua demasiadamente nessa desmistificação dos transtornos, Eslen Delanogare:
“Existem alguns cérebros que possuem um padrão de conectividade distinto, que podem dar para as pessoas habilidades extraordinárias, como criatividade e inteligência acima da média. Muitas dessas pessoas têm transtornos psiquiátricos. Porque o cérebro é diferente! Muitas vezes o padrão de conectividade pode ser um sintoma ou um poder, dependendo do ambiente que ela está.”
E para tornar isso mais palpável e simples pra você eu vou citar alguns tipos de transtornos.
Temos o TDAH: famoso e infame, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade é um transtorno que afeta drasticamente a produção de dopamina e serotonina no cérebro causando assim uma maior dificuldade de foco, motivação e controle de impulsividade.
Temos o TEA: grande vítima da deseducação social, o transtorno do espectro autista por sua ampla possibilidade de manifestações de transtorno causa muita dúvida e preconceitos. Uma das áreas do cérebro afetadas pelo TEA é o Lobo Temporal, responsável por captar informações de sons, gestos, olhares para processar e posteriormente distribuir para o resto do cérebro causando assim a percepção do cenário.
É comum que associem o autismo com a falta de interação e social, o que é uma meia verdade. Como o nome nos diz: é um espectro com muitas, mas muitas possibilidades.
Temos também um transtorno chamado de TB, ou transtorno bipolar. O TB afeta as áreas frontais e temporais do cérebro, criando uma grande alteração de humores chamada de Mania e Hipomania, que representam respectivamente os humores eufóricos e depressivos. Logo uma pessoa bipolar pode se encontrar em algum momento muito motivada para uma atividade e em outro muito indisposta e sem funcionamento nas suas sinapses neurais que permita a atividade neurofisiológica necessária para o funcionamento regular do cérebro.
São muitos transtornos, e não irei transformar esse texto em um artigo científico, mas quis apontar esses três por serem bem famosos, intensos e amplamente relacionáveis.
E é aqui que eu trago as pessoas neurotípicas para a conversa.
Os transtornos criam episódios comuns em todas as pessoas. Quem não se distrai? Quem não se desmotiva? Quem não tem desarmonias comunicativas? Quem não tem momentos de isolamento e reflexão?
Estou aqui dizendo que os transtornos são leves, fáceis e apenas episódios? Nunca!
Mas estou dizendo que não é algo de outro mundo, apenas de outra intensidade, mas que nós podemos nos relacionar.
Eu posso entender o que é minha desatenção e aumentar em escala para me aproximar de entender o que é uma pessoa que vive eternamente nessa desatenção como no caso do TDAH.
E é nesse movimento de associação, adaptação e sensibilização que começamos a criar novos ambientes.
Agora vamos falar sobre preconceitos e potencialidades.
O preconceito gira em torno do mesmo pensamento capacitista de que essas pessoas não podem executar tarefas básicas e que por isso precisam ser afastadas das responsabilidades, já que nesse papel não seriam um fator de risco.
Ora, como poderia uma pessoa que hora está animada e hora está depressiva tomar decisões sensatas?
Como posso dar um projeto detalhado para uma pessoa hiperativa?
Como posso envolver uma pessoa com dificuldades sociais em uma reunião importante?
Essas frases contém um fator muito comum nas interações sociais, que é transformar uma característica de uma pessoa em um resumo integral do seu ser.
Uma pessoa que possui episódios de desatenção não é uma pessoa incapaz de ter atenção.
E aqui entra um fator muito interessante de neurodivergentes: muitos deles possuem uma habilidade chamada de hiperfoco, que os permite se manterem por horas, dias ou meses fixados em algum tema. Essa fixação faz com que essas pessoas possam aprender outras línguas 10X mais rápidos, ou aprenderem piano sozinhas nos seus quartos, ou criar algum projeto de um ano em um mês.
É comum que pessoas neurodivergentes possuam uma capacidade cognitiva muito forte e as vezes acima da média. Alguns cambaleiam em comunicação mas são gênios matemáticos, enquanto alguns falham nas continhas mas possuem uma habilidade de leitura social e interação surpreende, fora que todos, por verem o mundo diferentemente, tendem a ser muito criativos perante os neurotípicos.
“Ora, então não há porque essas pessoas estarem fora do trabalho, elas são produtivas”, você poderia em indagar. E sim, eu concordaria que não deveriam, que são produtivas, mas que também estão diariamente lutando para se manterem funcionais e produtivas.
Aqui falarei do meu lugar, como um homem com TDAH em minhas experiências. Eu sou muito criativo, e tenho hiperfocos que me fazem aprender coisas numa velocidade muito alta. Quando adolescente eu aprendi a falar um pouco de italiano, francês e russo em um período de dois meses. Incrível né? Mas eu esqueci tudo.
Meu cérebro registra mas esquece aonde registrou.
Enquanto criativo, eu sou capaz de me superar constantemente, mas ainda tenho episódios em que eu sou plenamente incapaz de fazer um único slide que agrade. A famosa paralisia do TDAH. Eu sou funcional, e muito.
Mas a minha alta produtividade ainda tira uns encontros não tão românticos com meu diferente funcionamento neurofisiológico.
E não só eu, todos.
As pessoas neurodivergentes não precisam de pena, exclusão ou estereótipos inconsistentes. Nós precisamos apenas que os ambientes entendam nosso diferente funcionamento, nos permitindo assim explorar nossas maiores potências e trabalhar nossas maiores dificuldades.
Porque o transtorno não é um fantasma que nos assombra. O transtorno convive com medicações, mudanças de hábitos e psicoterapia.
Os transtornos são cuidados e normalizados nas rotinas daqueles que os possuem.
É importante que saibamos disso para que possamos humanizar as pessoas neurodivergentes.
E pra encerar eu te trago uma abordagem de dados: muitas pessoas possuem transtornos e não sabem por questões de falta de diagnóstico ou diagnósticos errados.
Se você se identificou com alguma coisa citada aqui, você pode ser do clube de pessoas neurodivergentes e nem sabia. Estamos mais dentro disso do que imagino, os típicos e os atípicos.
Nós já nos organizamos, adaptamos e funcionamos como coletivo sem um laudo que confirme e dê nome ao transtorno. Nós já sabemos intuitivamente que essa diversidade é comum.
E encerro esse texto com uma frase deveras simples, mas ainda complexa em seu significado emocional, de Neil Milliken:
“Nós deveríamos celebrar mais a neurodiversidade. O mundo seria muito empobrecido e a vida mais rígida se fossemos da mesma forma.”
Paulo Rezende é especialista em DEI e Neurociência com experiência em vários subsistemas de RH. Atualmente atua como Consultor da FourAll.