Armandinho tem razão em questionar. Nosso currículo escolar tem muitas matérias e não vamos discorrer sobre a relevância de todas elas. Vamos assumir que todas são igualmente importantes no cenário em que vivemos hoje, quando nossas crianças e jovens completam 9 anos de ensino básico e fundamental aprendendo sobre Ciências, Línguas, Matemática, Geografia e História com pitadas ou sementes apenas dos temas questionados por ele no terceiro quadrinho, dos quais vamos ressaltar Ética e Respeito. E este é o melhor cenário pois muitos sequer completam os 9 anos que separam a alfabetização do Ensino Médio hoje no Brasil, quando então os jovens podem e devem começar uma formação profissional. Sim, mas o Armandinho do futuro pode se deparar com o cenário descrito num conto de ficção científica em que as pessoas vivem sem passar pela escola porque quando chegam à adolescência são levadas para centros computacionais onde o computador explora a tipologia do cérebro e determina em que área aquela pessoa deverá atuar. Então a pessoa segue a vida até a idade de ir para Universidade, quando volta ao centro computacional para implantar em seu cérebro todo o treinamento e conhecimento daquela área para a qual foi designada na adolescência. Ela não precisa mais aprender, o seu cérebro vai receber aquele conhecimento de forma supostamente natural e ela poderá exercer a atividade com maestria, conforme a programação.
Se pudesse escolher, o que será que Armandinho preferiria? A visão futurista pode parecer tentadora e assustadora ao mesmo tempo. Mas não é uma questão de escolha. No conto, uma pessoa se rebela ao receber a devolutiva do seu teste: ela não teria habilidade específica para nenhuma atividade ou profissão. Questionando o status quo, ela escolhe o seu caminho e passa a programar as outras pessoas. A mensagem central é que quem não programa, é programado. Quem não escolhe, é escolhido. À despeito das desigualdades de acesso, sempre temos escolha. Por isso o questionamento do Armandinho é importante. Ética é sobre escolha. Respeito é a base da ética. Hoje temos escolha. Mas ainda somos programados a seguir os padrões que foram estabelecidos pela sociedade em que vivemos, pela educação, a família, a cultura, a religião e todas as outras lentes que usamos para ver o mundo. E nem sempre colocamos o respeito em evidência.
Leandro Karnal define ética como “uma prática a partir de virtudes como justiça e temperança”. Eu diria que estas duas virtudes podem se resumir em uma palavra: moderação, visto que a justiça percebe o que é direito e a temperança é a qualidade de quem é comedido, buscando a justa medida – ou a medida certa – que se encontra na moderação. Este seria o mundo ideal: onde a moderação prevaleceria. Onde a ética seria uma prática comum em seu mais nobre sentido: dar ao ser humano o senso prático que permita o exercício da moral aceita por todos. Mas como aprender isso?
“Toda ética humana é para fazer a escolha correta”, reforça Karnal enfatizando que “a base de todo processo ético é a liberdade”.
E somos livres, afinal? Para fazer nossas escolhas sem julgamentos? Somos livres quando escolhemos não cursar uma faculdade porque o salário não dá para bancar as mensalidades da faculdade e da escola que escolhemos para nossos filhos para que tenham acesso a uma educação melhor? Somos livres quando não declaramos numa entrevista de emprego que moramos na favela para não sermos rotulados de favelados? Somos livres quando fingimos conhecer o restaurante da moda sobre o qual conversam os colegas no intervalo do trabalho? Somos livres quando escondemos que a pessoa com quem vivemos é do mesmo sexo e não podemos estender a ela o benefício oferecido pela empresa? Somos livres quando alisamos nossos cabelos porque ouvimos da nossa mãe adotiva que é assim que devemos nos apresentar? Alguém diria… são escolhas. Sim, escolhas que refletem as máscaras que usamos para nos adequarmos aos ambientes que frequentamos. Mas isso também é uma escolha. Certamente. Poderíamos ser eremitas. Mas somos seres gregários. A vida em sociedade também foi uma escolha, há milhares de anos. Mas desde sempre criamos padrões e ainda não aprendemos a tolerar as diferenças.
Basta revisitar a História e veremos que a pluralidade da ética se percebe em constante movimento ao longo da trajetória da humanidade. Afinal, a ética e a moral estão intrinsicamente relacionadas com os valores cultuados pela sociedade em cada tempo, valores estes que se refletem na cultura de cada povo. E, como passageiros de um trem, se renovam a cada estação.
No livro “21 lições para o século 21”, o historiador Yuval Harari pondera sobre a história do mundo como “uma narrativa deprimente de ideais maravilhosos e comportamentos menos que ideais. Quantos cristãos oferecem a outra face, quantos budistas superam obsessões egoístas, e quantos judeus realmente amam seu próximo como a si mesmos? É a maneira como a seleção natural moldou o Homo sapiens. Como todos os mamíferos, o Homo sapiens usa emoções para tomar rapidamente decisões de vida ou morte. Herdamos nossa raiva, nosso medo e nossa paixão de milhões de ancestrais, que passaram pelos mais rigorosos testes de qualidade da seleção natural.”
A tolerância à diversidade deve ser ensinada, intensivamente, pelo exemplo, 24 horas por dia, 7 dias por semana, sempre e por todas as pessoas. Porque ainda precisamos reforçar o conceito de respeito. Humildar-se ao oferecer a outra face, ser altruísta (e não egoísta), amar a si mesmo e às outras pessoas são ações que refletem o respeito por si mesmo e por outras pessoas. Eis o fundamento da ética da pluralidade.
E finalizo com mais uma reflexão de Karnal, quando diz que entre “o império do meu eu e o império do seu eu deve haver uma zona republicana e democrática tolerante. O outro ser de um jeito diferente do seu não o torna melhor ou pior, mas apenas diferente.” Isso não está no currículo acadêmico. Mas podemos aprender na prática, basta querermos.