“Num primeiro momento, é somente a percepção de que não conseguiremos impor nossa vontade sempre e a todos que nos faz refrear o impulso de fazer isso: agimos então em nosso próprio interesse, evitando nos colocar em situações nas quais poderíamos nos dar mal. Mas a interiorização (ou o investimento) da tolerância requer mais: que reconheçamos ao outro o direito de não se curvar às nossas imposições, de ter suas próprias ideias e opiniões, seus próprios desejos, fantasias e visão do mundo. Exige, em suma, que respeitemos a diferença, e naquilo mesmo que para nós é importante, pois para aceitar diferenças às quais não imputamos relevância não é preciso esforço algum.” Sociedade, Cultura, Psicanálise” – Renato Mezan
Muitos e muitas acreditaram, com o início da crise causada pela Covid-19, que o mundo mudaria num relance… Afinal, a crise atingiu a todos e todas, já que somos humanos e humanas… mas hoje já percebemos que nem a doença afetou os mesmos corpos humanos da mesma forma.
Acreditamos que por que somos humanos e podemos ser afetado/as por uma doença, que somos iguais… Mas a mesma doença que atinge vários tipos humanos, mostrou que nem como seres humanos somos iguais – vários reagem ao adoecimento de forma totalmente diferente, seja por conta de questões herdadas, como questões genéticas e biológicas, mas também por questões adquiridas, como escolaridade e classe social.
E o que isso tem a ver como tolerância? Tudo! Porque quanto mais diferentes somos, mais difícil fica de aceitar a diferença e ser tolerante com ela.
Se afirmamos que todo/as somos diferentes, único/as e plurais, será possível ser tolerante? Claro! Não só é possível como necessário. Mas não é simples e indolor.
Para sermos tolerantes, precisamos entender quem somos e quais são os nossos vieses, aquelas trilhas neuronais que “facilitam” a nossa rapidez de resposta, mas que também podem limitá-la. Normalmente essas trilhas são bem basilares e advém de “nossas origens” e acabam por isso perpetuando crenças da comunidade da qual nos originamos e com a qual nos parecemos. Se temos medo do diferente e se somos criado/as pelos nossos iguais, como poderia ser fácil aceitar, respeitar e acolher cada um/a em sua individualidade?
Conceitos como Identificação e Narcisismo das Pequenas Diferenças podem nos ajudar a compreender melhor porque tememos tanto o diferente e o transformamos até em inimigo.
Para o Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, a identificação é um processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade constitui-se e diferencia-se partir de uma série de identificações. E como dito acima, nossas identificações primárias, isto é, as primeiras, são aquelas feitas com as figuras parentais, aquelas que nos criam e cuidam, parte daquele em torno que, normalmente nos é muito próximo e parecido. Assim, começamos desde pequenos/as a aprender que o igual nos cuida, nos provém, nos alimenta, nos acaricia e nos protege… e nos protege daquele que é estranho e diferente , que não pertence ao nosso grupo, que por isso nos parece ameaçador e pode ser considerado como um inimigo.
O segundo conceito que acredito poder nos ajudar a entender melhor porque tolerar pode ser tão difícil é outro cunhado por Freud no arcabouço psicanalítico – o narcisismos das pequenas diferenças, que seria uma espécie de repugnância gratuita e primária que temos por pessoas ou grupos de nosso próprio meio social, que, muitas vezes, são muito semelhantes a nós mesmos, com afinidades e interesses comuns. Mas os mesmos interesses em comum que poderiam ser algo que nos aproxima, quando percebidos como diferenças, entendemos que não “podemos estar do mesmo lado” e sim em “campos opostos”, lutando pelas mesmas coisas. Pensem em cidades que rivalizam – Rio e São Paulo, países – Brasil e Argentina, entre outros vários exemplos. Como meras e minúsculas diferenças entre seus membros/as, podem acabar se transformando em antipatias, rixas e até guerras?
“Nas antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos, podemos reconhecer a expressão de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si, e se comporta como se a ocorrência de um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificá-los.” (FREUD, 1921/2011, p. 57)
Mas como diria Mesan, na citação que inicia o texto, a cultura pede ao ser social muitas renúncias… Se para viver em sociedade, precisamos nos juntar e sermos afiliado/as a grupos, que muitas vezes nos ameaçam em nossa individualidade, voltamos nossa agressividade, por muitas vezes, por não podermos ser somente aquilo que somos, àqueles que nos parecem diferentes e que podem, quem sabe, estar vivendo as suas individualidade – unimo-nos com os que nos identificamos, para poder hostilizar os que nos são diversos.