Glauco Figueiredo é um homem negro careca que usa óculos e na foto veste uma camisa com estampa Ankara. Jornalista, tem mais de 17 anos de experiência em imprensa, Comunicação Corporativa e Gestão de Crise, tendo atuado em diferentes segmentos. É o criador do perfil @omowale_br e parceiro da FourAll como consultor de Diversidade e Inclusão, estudioso da temática racial. É membro e moderador do Coletivo Pais Pretos Presentes e membro do Coletivo Mãos Negras, de Presidente Prudente, onde mora com a esposa e o filho. E foi uma das pessoas que coloriu as imagens da minha adolescência, quando juntos cursamos o então chamado 2º grau. Enfim, Glauco é um presente que compartilho com você que lê o Blog da FourAll. O artigo a seguir foi escrito por ele.
O dia que deve se estender pelo ano todo
Passam-se anos e a chegada do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, vem sempre acompanhada de uma série de abordagens jornalísticas e convites para palestras a respeito deste importante marco cunhado pelo grupo gaúcho Palmares, do qual o poeta e professor Oliveira Silveira fez parte. Via de regra, muitas das expectativas que ficam por trás deste contexto mais macro, é o de querer ouvir relatos de episódios de racismo e outras experiências dolorosas do dia a dia que afligem as pessoas pretas. Sem dúvida alguma, os processos de desconstrução e de tentativa de “despotencialização” da população negra em diáspora praticados ao longo de quase 400 anos de escravização deixaram marcas psicossociais e conjunturais profundas com as quais lidamos ainda hoje. No entanto, tenho pensado que falar sobre a “tecnologia” do racismo também deve ser alvo de debates e desconstruções por parte das pessoas branquitude, afinal, não foram as pessoas negras que inventaram o racismo com os seus desdobramentos ideológicos, políticos, sociais e econômicos.
Para as pessoas afrodescendentes pensar o 20 de novembro como referência temporal é exercer o processo de Sankofa (símbolo Adinkra que diz que “Nunca é tarde para resgatar o que ficou para trás”) e escrever o nosso futuro a partir deste momento, baseados em Ubuntu (que na língua quimbundo quer dizer resumidamente “eu sou porque nós somos”, mas vai bem além disso).
Ao longo de quatro séculos, pessoas extraídas à força do continente africano e aquelas nascidas aqui sofreram e ainda sofrem tentativas constantes de apagamento histórico e das suas pertenças. Curar e cuidar dessas marcas exige de nós um profundo processo de recuperação daquilo que nos foi tirado, de reconciliação por meio de relações de afetos e acolhimento entre pessoas negras e de “reencontros” com os nossos antepassados. Lembrar dos relatos das nossas mais velhas e dos mais velhos é como “encaixar” as peças de um “quebra-cabeças” que remontam as nossas referências ancestrais, constituídas por muitos povos, como os Ashantis, Ewés, Fântis, Fulas Fons, Mandingas, Yorùbás e uma infinidade de pessoas de origem do tronco linguístico bantu, como os Ambundos, Bacongos, Benguelas, Cabindas, Quimbundos entre muitos outros.
São origens que fazem uma “ponte de conexão” com a potência que habita cerca de 56,4% da população brasileira, o que corresponde a quase 118 milhões de pessoas no país. São pessoas descendentes de povos desenvolvedores de múltiplas filosofias, de cosmogonias hoje lidas como Astronomia, de conhecimentos terapêuticos para a saúde e o bem-estar por meio do uso de ervas e plantas até hoje; de desenvolvedores conhecimentos matemáticos, como o osso de Lebombo e a Mancala; da forja do ferro que se espalhou pelas Minas Gerais, terra na qual muitos Akans vindos do Golfo da Guiné aplicaram seus conhecimentos milenares que deram origem ao ciclo exploratório do ouro e de uma infinidade de conhecimentos presentes no nosso dia a dia.
“Pensar” o 20 de novembro é ter a oportunidade de encontrar sentidos no trabalho desempenhado pelo historiador, antropólogo e físico senegalês Cheik Anta Diop ao comprovar que os antigos keméticos (atuais egípcios) eram um povo preto, assim como os núbios, na atual região do Sudão. É escutar com carinho e calor no coração o canto de Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Martinho da Vila; é ter acesso às obras produzidas por Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus, Milton Santos, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Abdias Nascimento e Barbara Carine, é ainda se “aquilombar” em Coletivos e construir novas amizades que irmanam. É “tornar-se negro”, conforme bem descrito na potente produção da grande Neusa Santos Souza.
São inspirações que nos impulsionam a incitar por mudanças no mercado de trabalho abrindo espaços de forma efetiva e inclusiva, principalmente nas posições de liderança. Segundo dados de um levantamento feito pelo Instituto Ethos com as 500 maiores empresas do Brasil, a participação de pessoas negras em cargos de gestão é de apenas 4,7%, o que demonstra a longa jornada a ser percorrida. Para nós que somos pessoas pretas, o dia 20 novembro é uma data constante que simboliza o quanto “os nossos passos vêm de longe”, conforme eternizou Jurema Werneck. É uma data que procuramos vivenciar de forma permanente e espraiada no decorrer de um ano todo, afinal, somos negras, negros e negres o ano todo, do início ao fim das nossas vidas.