O mito da democracia racial replicado em discursos “inclusivos”.
Um dos maiores problemas que enfrentamos nos debates de diversidade é a essa inclusão generalista, de tons pastéis, sem contraste e simplista. A ideia de que existe equidade entre brancos e negros, chamada de Democracia Racial, é uma ideia que assombra qualquer pessoa que tenha estudado minimamente sobre o tema. Quando falamos de debates raciais, é fundamental que falemos sobre o colorismo, que em muitos capítulos da nossa interação social se junta com o mito da democracia racial.
Se isso te assustou, mantenha a calma, pois vamos desenvolver.
Vamos começar com o mito da democracia racial. Sua definição diz que existe o estado de perfeita igualdade entre as pessoas independentemente de raça, cor ou etnia, o que levaria a uma sociedade sem nenhum tipo de exclusão racial. Podemos dizer que essa democracia é uma colega de classe da meritocracia e do colorismo.
Se a sociedade não possui nenhum tipo de pensamento ou ação contra negros, resta apenas estas partes se esforçarem. Se um jovem periférico não saiu da favela, é porque ele não trabalhou o suficiente, afinal, existem casos de quem saiu. Se um sai, todos podem sair, certo? Absolutamente errado.
Nossa sociedade, com esses pensamentos, atribui que os casos de exceção são facilmente possíveis de se tornarem regras, ignorando todas as estruturas sociais, econômicas, políticas, regionais e familiares em que essas pessoas podem estar inseridas. Por este simples fato de que a vontade nunca foi, não é e nunca será suficientemente forte para combater e ultrapassar todas as estruturas e barreiras a que os indivíduos estão socialmente expostos.
Agora vamos para o colorismo.
O colorismo é uma forma de preconceito com pessoas da mesma raça que são tratadas diferentemente com base na tonalidade de sua pele. Significa que quanto mais clara for a pele da pessoa negra, menos preconceito ela sofrerá, pois entende-se que está mais próxima da etnia branca. O colorismo é o pai, assim por dizer, da hierarquia racial.
No Brasil, nossa história conta com muita miscigenação, o que, diga-se de passagem, não é uma coisa linda da pluralidade brasileira. Não porque seja errado ou porque haja algo de não belo em relacionamentos inter-raciais, mas porque há tudo de errado na forma com as escravas e posteriormente mulheres libertas, porém ainda na margem da sociedade, foram violentados sexualmente. Nossa miscigenação começa na mais pura violência e evolui, encontrando seu caminho num processo de embranquecimento da população.
Esse processo era alimentado pela tese da eugenia, termo criado pelo antropólogo Francis Galton em 1883, que a definiu como o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente. Em resumo, uma ideia de pureza racial que infelizmente nos acompanha pela história da humanidade.
Essa tese foi apresentada por uma comissão brasileira, liderada pelo então diretor do Museu Nacional, João Baptista de Lacerda, no I Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, em 1911. Lá, ela recebeu elogios pela forma pacífica com que os brasileiros resolveriam seu “problema negro”.
Acreditava-se que esse processo de miscigenação, feito com importações de pessoas ricas da elite europeia, iria erradicar a raça negra e deixar um número quase nulo de mestiços.
O tempo avança e essa tese, além de não funcionar como prevista, é aposentada, abrindo assim lugar para nossa democracia racial, a partir da década de 1930.
Percebam que sempre houve um desejo intrínseco da erradicação de pessoas pretas, e que para resolver o problema começaram a tentar clarear o tal do “problema negro”, e quando ele falha, apontamos em discursos formais que o Brasil é um país de todas as cores, e o como isso é lindo. E esse discurso é de grande dano, já que é a base para a qual se nega a necessidade de políticas efetivas para reparação histórica e para uma construção de um futuro digno da população negra, que até hoje paga débitos de uma conta orquestrada pelo passado branco do nosso país e de suas elites.
Acredito que neste momento você tenha entendido como a mitológica democracia racial, a meritocracia e o colorismo são de fato alunos da mesma turma. Mas agora voltaremos para o colorismo e nele passearemos intelectualmente.
A matemática é clara quando aponta que melanina é um fator chave para a oportunidades sociais. Pele retinta, vassoura e cozinha. Pele clara, possivelmente você pode trabalhar no escritório.
E o debate do colorismo, como apontado por todas as pessoas que travaram lutas políticas até aqui, foi criado como uma estratégia de cisão do movimento negro. Um movimento organizado é perigoso para um sistema racista. Organização alimenta o progresso. Quando a branquitude introjeta que pessoas negras de pele clara não são tão negras assim, começamos a ter debates em cima dessa hierarquia social. Cria-se a ideia de que racistas teriam preferidos, o que acredito nem precisar dizer ser uma falácia.
Racistas são racistas se você é de pele clara ou pele escura, de cabelo ondulado ou crespo, se você tem ensino médio ou doutorado. Racistas são racistas e seguirão jogando seu jogo eugenista.
O ponto chave é: nós não devemos ocupar papel de peças nesse jogo. Não existe hierarquia racial porque não existem racistas relativamente racistas.
Porém, existem privilégios que devem ser reconhecidos, e que devemos lutar para que todas as pessoas possam ter.
Racistas não tem preferidos, mas existe uma coisa chamada passabilidade, que hoje é possível por todos os anos de sofrimento e lutas sociais que existiram da comunidade negra até aqui.
A passabilidade, hoje utilizada amplamente pela comunidade trans, é um termo que surge nos EUA por volta de 1920, usado para denominar a ambiguidade na leitura social de indivíduos miscigenados.
Em linguagem clara e direta, passabilidade é a capacidade e possibilidade de uma pessoa negra se mesclar em ambientes brancos.
Quando falamos de um país racista, o efeito psicológico que a grande maioria das pessoas pardas tem é o de se proteger, o que nesse caso se manifesta com todo um processo de absorção cultural. A menina de pele clara ainda é chamada de menina do cabelo ruim na infância. E ela alisa o cabelo, para parecer mais branca. Quando insultado de neguinho, o menino de pele clara evita o sol, para evitar a dor do preconceito. E assim vai sendo criada essa passabilidade estética que – reforço – é pautada na dor e no desejo dos indivíduos de serem aceitos como humanos, e não em um contexto de hierarquia racial.
As pessoas retintas raramente possuem opções de minimizarem suas negritudes, e por falta da passabilidade, experimentam o racismo com mais recorrência.
Existe hoje uma ideia que é ao mesmo tempo certa e errada de que todas as pessoas negras são iguais. Aqui entramos no exemplo simplista que citei anteriormente.
Preto da favela é tudo igual, pele clara ou escura, sai quem quer, dizem por aí.
Não somos todos iguais, mas somos vítimas de um inimigo em comum que se chama racismo. Apanhamos de formas diferentes, em frequências diferentes e até mesmo em intensidades diferentes. Mas estamos do mesmo lado do jogo dos oprimidos.
DENTRO da comunidade negra, podemos nos declarar iguais em direitos e deveres. Eu luto por você e por mim, e você igualmente o faz. Mas FORA da nossa comunidade, não somos iguais, pois temos privilégios.
Acredito que você pode perceber o quão sutil pode ser a interpretação disso tudo, né?
Quando levamos esse cenário para a realidade das empresas, nessa linha de raciocínio de igualdade sem contrastes, teremos dados de uma porcentagem de negros, mas já que são todos iguais, independente de tons e traços, olharemos para negros de pele clara, traços finos, corpos torneados (jamais gordos), cabelos “comportados” e cultura predominantemente branca.
É aqui, na execução prática dessa generalização simplista, que mora a inclusão confortável da branquitude.
Isso quer dizer que as pessoas de pele clara são cruéis? Jamais. Porém isso quer dizer que elas devem lembrar de lutar por políticas de inclusão para o resto da sua comunidade preta. O sistema nunca jogou a nosso favor, e não é esperado que ele vá em breve.
Se é mais fácil que as pessoas de pele clara acessem a educação formal e o mercado de trabalho, é necessário que elas estendam suas mãos e ajudem quem não conseguiu com tanta facilidade.
Mas calma, porque aqui não queremos o complexo de branco salvador. Olha o colorismo e a hierarquia racial batendo na nossa porta novamente…
Não é sobre um grupo salvar o outro, sobre um ser capaz e outro não, nem sobre nada de tal gênero. É sobre fazer valer o sentido da palavra comunidade. É sobre entender que racistas não tem preferidos, e que pra chegar em qualquer lugar, precisamos lutar de mãos dadas, sendo peças do nosso jogo, e não do jogo exclusivo e oportunista do racismo estrutural.
Existe igualdade e existe desigualdade em ser uma pessoa negra. E não precisamos abrir mão desses contrastes. Mas precisamos nos incomodar com a falta deles, precisamos nos incomodar de sermos os únicos, precisamos nos incomodar em só ver pessoas que foram embranquecidas por um sistema opressor.
Não é sobre incluir pessoas pretas como uma categoria única e generalista, e sim sobre incluir toda a pluralidade das pessoas pretas.
Paulo Fábio Rezende é um homem pardo, consultor da FourAll, especialista em DE&I e Neurodiversidade.